Aldeia dos Mortos
Romance – Editora Patuá – 2020
Aldeia dos mortos, de Adriana Vieira Lomar, chama a atenção pela originalidade. O protagonista é um feto que percebe tudo o que se passa fora da barriga da mãe, que participa da vida familiar e dos diferentes aspectos do universo físico e existencial ao seu redor. Um feto que anda na rua, segue os passos dos personagens, tenta interferir na história, apesar de não ter ainda nascido. Alguém que carrega em si um sentido real e metafórico e se propõe a uma missão difícil. Muitas vezes o feto é tratado como ele/ela, levantando a questão da identidade sexual que nos acompanha, de algum modo, desde que somos concebidos.
A narrativa, principalmente do meio para o fim do romance, tem lances espetaculares, dignos de um folhetim – mas em literatura isso, em geral, não é o principal. O que conta mesmo é a linguagem, a mola mestra de tudo o que se diz e o que se fala, que surge como um rio ora subterrâneo, ora de superfície, e que tem, entre outras funções, a de embalar o leitor, levá-lo a dimensões mais intensas e diversificadas do que aquelas que costumamos encontrar na realidade cotidiana.
No livro de Adriana, a linguagem se expressa basicamente em dois planos. Um deles é o das falas dos personagens, que os caracterizam e tipificam, utilizando desde expressões regionais (sem cair nos exageros de um regionalismo explícito) até palavras contemporâneas – como a nos lembrar que, embora estejamos mergulhados num universo ancestral, vivemos neste século, experimentando todas as suas contradições, enigmas e até esperanças.
O outro plano é o da paisagem, um elemento que acolhe e facilita a criação de climas literários e visuais. O autor que maneja bem suas ferramentas vai distribuindo imagens como quem semeia, e assim o leitor pode engendrar suas próprias impressões, construir um cenário que é único a cada leitura. Quem deseja ir mais fundo na experiência literária não deve se preocupar apenas com o que acontece entre o autor e o texto, mas principalmente entre o que ocorre entre o texto e o seu leitor. Quanto mais o escritor for hábil e sugerir, mais o leitor poderá aceitar o convite para mergulhar na escrita.
Na abertura do romance, as notas das cigarras atrapalham a visão do narrador, e aí temos uma singularidade: os sons interferem não nos ouvidos da autora, mas sim na sua capacidade de olhar. Enquanto isso, “o sol se põe e pinta o céu de guache”.
Eis um exemplo expressivo de paisagem/cenário: “o cheiro do tacho da laranja caramelizada da cor do sol que ainda não brotara de vez. Do pão fresquinho e do café. (…) O vento bate e traz a fragrância das amoras que, reluzentes, dão em cachos no quintal.”.
O feto sente-se um gergelim, uma pequena semente, que “o separa de uma nuvem com nervuras e diversos caminhos”. Nuvens, líquidos e sólidos fazem parte do seu dia a dia. A mãe é aconchego e proteção, mas ao mesmo tempo dúvida, pois não sabe bem como lidar com o pai, uma figura misteriosa que surge apenas de vez em quando.
Então somos introduzidos ao casarão, que abriga uma família matriarcal. A principal figura é Dona Dorinha, a Vó do Caco, quituteira e valente senhora que pensa o mundo e se move nele basicamente tentando proteger seus rebentos e todos os que dela se aproximam. Seu fiel escudeiro é o gato Matias, que vive com ela no porão malcheiroso e fareja como ninguém as diferentes nuances dos choques dramáticos que se dão à sua volta. A Vó cola cacos de vidro e porcelana, outra imagem metafórica que indica o significado do papel dessa mulher (e, por extensão, de todas as mulheres) no mundo em que debatem e vivem.
Mivó tem uma sucessão de filhas que muitas vezes não a compreendem e com quem se choca, já que sua preferida é Bernadete, um personagem singular, transgressora acima de qualquer outra qualificação, elemento catalisador de voltas e viradas no roteiro da narrativa. A criada Lia oferece um contraponto para situar melhor os conflitos familiares e oscila entre a dedicação a Vó do Caco e o desejo de se livrar da sina de servir sem quaisquer limites ou medidas a seus patrões.
Os personagens masculinos, por sua vez, também ocupam um lugar de destaque, desde Bernardo, o trágico filho de Vó do Caco, até o professor Sardinha, pensionista do Casarão, participante de acontecimentos políticos e da oposição à ditadura militar. É preciso ainda mencionar o padre, também envolvido na luta política, que é atingido por um desfecho dramático, a indicar que os tempos são bicudos e, como tais, não permitem o refresco e a abertura de boas perspectivas que, a esta altura, o leitor do romance pode desejar.