Adriana Vieira Lomar

Adriana Vieira Lomar

Adriana Vieira Lomar

Ébano sobre os Canaviais

Romance – Editora José Olympio – 2022

Em seu segundo romance, Adriana Vieira Lomar compõe a saga de uma família multirracial em meio ao preconceito e de suas reverberações estruturais na sociedade brasileira contemporânea — Livro vencedor da 7ª edição do Prêmio Kindle de Literatura 2022.

Fins do século XIX, José, 13 anos, foge de Portugal, então assolado pela peste, e chega ao Recife. É adotado pelo cônsul Henrique e sua esposa, Sara. Termina seus estudos e se torna caixeiro viajante. Apaixona-se por Ébano, alforriada, filha da escravizada Shakina. Da união, nasce Zeca.

Pressionada pela sociedade, Ébano renuncia à maternidade e José foca na educação do filho e nos negócios até que, na maturidade, se envolve com a filha de uma baronesa e termina seus dias como um rico comerciante.

Enquanto isso, Ébano traça sua jornada pessoal longe do filho e de sua ascensão social como proprietário de um engenho de cana de açúcar.

Passado o tempo, século XXI, Maria Antonieta, racista, desconhece seus verdadeiros antepassados, pensa ser descendente de uma baronesa e de José. Ao se ver só, separada do marido provedor, trilha uma jornada de autoconhecimento culminando na descoberta de sua verdadeira origem.

Com uma prosa envolvente e sensível, Adriana expõe um belo relato sobre preconceitos estruturais que moldaram a sociedade brasileira.

A narrativa, principalmente do meio para o fim do romance, tem lances espetaculares, dignos de um folhetim – mas em literatura isso, em geral, não é o principal. O que conta mesmo é a linguagem, a mola mestra de tudo o que se diz e o que se fala, que surge como um rio ora subterrâneo, ora de superfície, e que tem, entre outras funções, a de embalar o leitor, levá-lo a dimensões mais intensas e diversificadas do que aquelas que costumamos encontrar na realidade cotidiana.

No livro de Adriana, a linguagem se expressa basicamente em dois planos. Um deles é o das falas dos personagens, que os caracterizam e tipificam, utilizando desde expressões regionais (sem cair nos exageros de um regionalismo explícito) até palavras contemporâneas – como a nos lembrar que, embora estejamos mergulhados num universo ancestral, vivemos neste século, experimentando todas as suas contradições, enigmas e até esperanças.

O outro plano é o da paisagem, um elemento que acolhe e facilita a criação de climas literários e visuais. O autor que maneja bem suas ferramentas vai distribuindo imagens como quem semeia, e assim o leitor pode engendrar suas próprias impressões, construir um cenário que é único a cada leitura. Quem deseja ir mais fundo na experiência literária não deve se preocupar apenas com o que acontece entre o autor e o texto, mas principalmente entre o que ocorre entre o texto e o seu leitor. Quanto mais o escritor for hábil e sugerir, mais o leitor poderá aceitar o convite para mergulhar na escrita.

Na abertura do romance, as notas das cigarras atrapalham a visão do narrador, e aí temos uma singularidade: os sons interferem não nos ouvidos da autora, mas sim na sua capacidade de olhar. Enquanto isso, “o sol se põe e pinta o céu de guache”. 

Eis um exemplo expressivo de paisagem/cenário: “o cheiro do tacho da laranja caramelizada da cor do sol que ainda não brotara de vez. Do pão fresquinho e do café. (…) O vento bate e traz a fragrância das amoras que, reluzentes, dão em cachos no quintal.”.

O feto sente-se um gergelim, uma pequena semente, que “o separa de uma nuvem com nervuras e diversos caminhos”. Nuvens, líquidos e sólidos fazem parte do seu dia a dia. A mãe é aconchego e proteção, mas ao mesmo tempo dúvida, pois não sabe bem como lidar com o pai, uma figura misteriosa que surge apenas de vez em quando.

Então somos introduzidos ao casarão, que abriga uma família matriarcal. A principal figura é Dona Dorinha, a Vó do Caco, quituteira e valente senhora que pensa o mundo e se move nele basicamente tentando proteger seus rebentos e todos os que dela se aproximam. Seu fiel escudeiro é o gato Matias, que vive com ela no porão malcheiroso e fareja como ninguém as diferentes nuances dos choques dramáticos que se dão à sua volta. A Vó cola cacos de vidro e porcelana, outra imagem metafórica que indica o significado do papel dessa mulher (e, por extensão, de todas as mulheres) no mundo em que debatem e vivem.

Mivó tem uma sucessão de filhas que muitas vezes não a compreendem e com quem se choca, já que sua preferida é Bernadete, um personagem singular, transgressora acima de qualquer outra qualificação, elemento catalisador de voltas e viradas no roteiro da narrativa. A criada Lia oferece um contraponto para situar melhor os conflitos familiares e oscila entre a dedicação a Vó do Caco e o desejo de se livrar da sina de servir sem quaisquer limites ou medidas a seus patrões.

Os personagens masculinos, por sua vez, também ocupam um lugar de destaque, desde Bernardo, o trágico filho de Vó do Caco, até o professor Sardinha, pensionista do Casarão, participante de acontecimentos políticos e da oposição à ditadura militar. É preciso ainda mencionar o padre, também envolvido na luta política, que é atingido por um desfecho dramático, a indicar que os tempos são bicudos e, como tais, não permitem o refresco e a abertura de boas perspectivas que, a esta altura, o leitor do romance pode desejar.

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